segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A PROBLEMÁTICA METODOLÓGICA DA DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE

A PROBLEMÁTICA METODOLÓGICA DA DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE
(Segunda nota breve sobre Desigualdades em Saúde como objeto de conhecimento)[1]

Naomar Almeida-Filho[2]


Introdução

Na primeira nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento, comissionada pelo CEBES, intitulada “A Problemática Teórica da Determinação Social da Saúde”, propus que o problema das desigualdades em saúde compreende, simultaneamente, um desafio político e um objeto-modelo científico. Como objeto de conhecimento científico, desdobra-se em: (a) uma questão teórica e (b) uma problemática metodológica. Naquele texto, dediquei-me a recortar a vertente (a), a questão teórica das desigualdades, como passo inicial para formular sua articulação ao problema da determinação social da saúde. O foco da análise dirigiu-se ao processo de construção teórica tal como tipicamente realizado na literatura sobre desigualdades em Saúde, com especial atenção ao estabelecimento de uma estrutura terminológica própria. Referências, correlações e remissões ao termo (b), a problemática metodológica das desigualdades, foram indicadas apenas como sustentação aos argumentos desenvolvidos no texto citado.

Naquele texto, reapreciamos a questão do que constitui uma teoria, pensada como basicamente um dispositivo heurístico, configurado em três fases ou facetas:

Referencial filosófico:

a)                  epistemologia,

b)                  lógica,

c)                  método.

2) Processo de problematização,

a)      definição de objeto de conhecimento,

b)      construção de conceito,

i.               análise semântica, incluindo terminologia
ii.             análise sintática

3) Quadro teórico:

a)    modelo

b)   modelagem

i.           determinantes,
ii.         efeitos,
iii.       correlatos, inclusive mensuração.

Naquele texto, os itens (1) e (3) não foram apreciados, exceto no que fosse relevante para (2).

A presente comunicação pretende prosseguir o debate aberto pela primeira nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento. Compreende três partes: Na primeira parte, apresento uma súmula dos argumentos do texto citado acima que fundamentam os desdobramentos metodológicos objeto desta nota.  Isso significa identificar uma pauta complementar, destacando a questão dos lugares, espaços, níveis (multiníveis), dimensões, onde enfim as desigualdades operam seus efeitos principais sobre a saúde. Na segunda parte, completando um roteiro apenas esboçado na primeira nota, focalizo o tema das formas de expressão das desigualdades, conforme a crítica e proposição terminológica objeto de estudos anteriores. Na terceira parte, proponho elaborar melhor a problemática das modalidades de determinação das desigualdades em saúde, indicando que o uso da expressão “desigualdades em saúde” implica uma matriz conceitual e opções metodológicas que carecem e demandam explicitude, precisão e rigor. Nesse sentido, concluo com a sugestão de que as categorias determinação social – produção social – construção social podem significar aspectos distintos do processo de determinação (senso amplo) da saude-doenca-cuidado na sociedade.    

Parte I – Súmula da primeira Nota

O principal marco teórico que, nos países desenvolvidos e com base nas epistemologias do Norte, tem subsidiado a produção acadêmica sobre o tema desigualdades em saúde funda-se na Teoria da Justiça de John Rawls e em sua atualização/derivação feita por Amartya Sen, herdeiro do utilitarismo de Bentham-Ricardo-Mills, como uma Teoria do Bem-Estar Social (Social Welfare Theory – SWT).

A pergunta crucial da contribuição de Sen, em suas obras mais recentes sobre o tema, Inequality Reexamined (1992) e On Economic Inequality after a Quarter Century (Foster & Sem 1997) é: Equidade de quê? Para responde-la, Sem (1992, p. 20) recorre ao conceito de diversidade [diversity] humana, da seguinte maneira: “Fossem todas as pessoas exatamente similares, igualdade em um espaço (por exemplo, nas rendas) tenderia a ser congruente com as igualdades em outros (saúde, bem-estar, felicidade).” Ao justificar paradoxos aparentes no tratamento dessa questão, Sem considera que desigualdade em termos de uma variável (por exemplo, renda ou saúde) pode levar-nos a um sentido muito diferente de desigualdade no espaço de outra variável por exemplo, habilidade funcional ou bemestar). Do ponto de vista conceitual, isso implica considerar uma questão complementar: Equidade onde? Para responde-la a partir de uma perspectiva metodológica, Sen propõe a interessante concepção de “espaço avaliativo das desigualdades”, identificando variáveis focais relevantes (como por exemplo: rendas, riquezas, utilidades, recursos, liberdades, direitos, qualidade de vida etc.) e outras complementares, como o problema do estilo e dos “gostos desiguais” [unequal tastes]. Nesse aspecto, quiçá inadvertido, antecipa ou dialoga com a sociologia de Bourdieu.

Em segundo lugar, do ponto de vista metodológico, interessa-nos aplicações desse marco teórico na literatura sobre conceitos de saúde, particularmente dado que Rawls não inclui a saúde como uma das liberdades básicas, mas a define como um dos recursos [endowments] individuais. Por sua vez, em Inequality Reexamined (1992), Sen deixa espaço para se definir a saúde individual no âmbito do que chama de capabilities. Sem propôs tomar a esfera institucional da Saúde como parte de sistemas possíveis de compensação visando à equidade, dentro do aparato do welfare state. Sugere então que um serviço nacional de saúde poderia fazer parte de um sistema de justiça distributiva indireta, comparável a outros sistemas de justiça definidos pela distribuição direta de subsídios. 

Em terceiro lugar, naquele texto, propus uma crítica terminológica à produção acadêmica sobre o tema desigualdades em saúde. Rawls (1971) demarca conceitualmente a justiça [justice] como uma categoria institucionalizada de justeza [fairness] e utiliza o termo ‘diferença’ [difference] para designar soluções normativas que tomam a justiça como distribuição social compensatória de bens e recursos. Entretanto, não distingue, com clareza e rigor, equidade [equity] de igualdade [equality], apesar de empregar consistentemente o termo desigualdades (sempre inequalities, e nunca inequities) como base nominal para justificar o princípio de justiça. 

De certo modo, a noção rawlsiana de equidade implica um componente estrutural do sistema de valores da sociedade, resultando em equivalência entre os conceitos de equidade e justiça e, correlativamente, entre a falta de equidade e a noção de injustiça. A despeito da referência a noções positivas de justiça (justice) e justeza (fairness), a problematização metodológica dos gradientes sociais em saúde prioriza a negação, operando conceitos de desigualdade e diferença em lugar de igualdade e equidade. Tal padrão mostra-se simétrico e consistente em relação ao modo predominante de definição da saúde como ausência de doença no campo da pesquisa em saúde individual e coletiva. Suma: Equidade = ausência de injustiça; Saúde = ausência de doença. 

Por sua vez, Amartya Sem emprega o termo equity como equivalente a justiça distributiva para definir o seu axioma fraco de equidade. Não obstante, raramente emprega o significante antônimo simétrico, exceto num intrigante fragmento em que define inequity como “perda do bem-estar social” (Foster & Sem 1997). Observei que Sem também não parece distinguir correlatos semânticos do conceito de desigualdade [inequality] senão as noções de ‘diferença’ [difference], ‘diversidade’ [diversity] e pluralidade [plurality], equivalentes a variação individual ou contraste entre coletivos humanos, sem revelar preocupação com rigor e precisão terminológica.

Observei que praticamente todos os enfoques analisados apresentam uma incômoda confusão terminológica, à exceção da contribuição de Jaime Breilh (2003). A desigualdade, para esse autor, corresponderia a evidências empiricamente observáveis da diversidade que corresponderia à variação em características ou atributos de uma dada população (gênero, nacionalidade, etnia, geração, cultura etc.). A diversidade pode adquirir um sentido positivo em sociedades onde predominem relações solidárias e de cooperação entre gêneros e grupos étnicos. Nesse referencial, a inequidade [inequidad] seria uma categoria analítica da diversidade que marca o lado negativo da diversidade, quando esta se torna veículo de exploração e subordinação. O termo “iniquidade”, por sua vez, seria sinônimo de injustiça (Breilh 2003). A distinção entre inequidade e iniquidade proposta por  Breilh é interessante tendo em vista que a distribuição desigual de bens numa sociedade não teria apenas  uma raiz política diretamente referida à justiça social [iniqüidade], mas seria sobredeterminada estruturalmente [inequidade].

Em quarto lugar, naquele texto, apresentei uma proposta de matriz semântica visando contribuir para reduzir a confusão terminológica sobre o tema. Propus incorporar na pauta política da Saúde Coletiva diferenças e diversidades que, por se situarem predominantemente no plano simbólico, apareciam como habitus (outra categoria da sociologia de Bourdieu) ou como mero resíduo da vida social dos seres humanos, como por exemplo, gostos, estilos de vida, condutas de risco e idiossincrasias de base etnico-cultural.

Propus articular os conceitos de desigualdade da seguinte forma: A ocorrência de variação natural ou genética, expressa em diferenças  individuais, advindas da interação de processos sociais e biológicos, produz  diversidade nos espaços coletivos sociais e desigualdades nas populações humanas. Por outro lado, estruturas sociais, processos políticos perversos e políticas de governo sem equidade, geram desigualdades relacionadas a renda, educação e classe social, portanto inequidades, correspondendo a injustiça social. Algumas dessas desigualdades, além de injustas, são iníquas e, portanto, moralmente inaceitáveis; constituem iniquidades que geram indignação e potencialmente mobilização social. Em paralelo, nos planos simbólico-culturais, ao construir identidades sociais baseadas na interação entre diferenças individuais e padrões coletivos, seres humanos afirmam, na maioria das vezes através de mecanismos não conscientes, sua distinção de outros enquanto membros de segmentos, grupos e classes sociais. Em suma, o conceito diversidade remete primordialmente à espécie, diferença ao plano individual, desigualdade à esfera economico-social, inequidade ao campo da justiça, iniquidade ao político, distinção ao simbólico.

Aplicando esta abordagem à questão geral das disparidades em saúde, temos o seguinte: desigualdades (variação quantitativa em coletividades ou populações) podem ser expressas por indicadores demográficos ou epidemiológicos (no campo da Saúde) como "evidência empírica de diferenças" em estado de saúde e acesso ou uso de recursos assistenciais. Por outro lado, desigualdades de saúde determinadas por desigualdades relacionadas a renda, educação e classe social, são produto de injustiça social. Na medida em que adquirem sentido no campo político como produto dos conflitos relacionados com a repartição da riqueza na sociedade, tais desigualdades devem ser consideradas como inequidades em saúde. Por sua vez, as inequidades em saúde que, mais que evitáveis e injustas, são vergonhosas, indignas, e nos despertam sentimentos de aversão conformam iniquidades em saúde. 

Parte II – Formas de expressão das desigualdades

Consideremos:

div = diversidade

dif = diferença

[dist = distinção]

des = desigualdade  

ineq = inequidade

iniq = iniquidade

div  -->  dif  --> des  -->  ineq  -->  iniq

a = atributo de desigualdade

S = sujeito (indivíduo, caso etc.)

C= coletivo ou conjunto de S (população, grupo etc.)

N = 2(S)

Situação de Igualdade:










S1 = S2

div|C1 = 0

dif|S1 = 0

dif|S2 = 0

Formas derivadas da Diversidade:

a) diferença

b) desigualdade

Situação de Diferença:










S3 S4

div|C2 = 1

dif|S3 = 1

dif|S4 = 1


             S3 é azul

             S4 é verde


Habitus  -->   diferença de atributo   -->    distinção = dist


Situação de Desigualdade:










S6 > S5

m = grandeza de a

diferença  numérica = desigualdade = des

div|C3 = n, dado que n > 0

m|S6 > m|S5

des = m|S6 / m|S5 > 0   -->    índice de desigualdade tipo Gini (n = 2)

desigualdade injusta    -->    inequidade = ineq

inequidade indigna     -->    iniquidade = iniq


Situação de Desigualdade em níveis:

2 assimetrias conceituais entre sujeito e sociedade

1) S é parte de C

2) S é unitário

3) C é estruturado hierarquicamente

Sociedade: “coletivos compostos” de forma C [C1, C2, C3, ... Cn]

4) K = [C1, C2, C3,...Cn] 

5) K = [C1 (C11, C12, C13, ... C1...n), C2 (C21, C22, C23, ... C2...n), C3 (C31, C32, C33, ... C3...n), ... Cn (Cn1, Cn2, Cn3, ... Cn...n),]


















Parte III – Determinação e sobre-determinação em saúde

No texto citado acima, introduzi algumas questões epistemológicas e teóricas capazes de alimentar um debate que precisa ser ampliado e aprofundado. Nesse sentido, entre as questões teóricas pertinentes com repercussões metodológicas, destaquei as seguintes: Quais são as fontes de desigualdade, inequidade e iniquidade em saúde? Como operam a opressão e a injustiça na promoção e persistência das iniquidades em saúde? Como abordar, de modo conceitualmente consistente e metodologicamente rigoroso, tais questões?   

Um primeiro passo consiste em recorrer a teorias críticas da sociedade e da política para compreender a questão do quê (estados, processos, eventos), antes de tudo, determina ocorrência, forma e atuação dos gradientes sociais. Um segundo passo será definir a que nível de abstração se aplica o conceito de desigualdades em saúde. A pergunta seria: onde (no sentido de espaço social e político) operam os determinantes sociais da saúde?

1. Em primeiro lugar, na dimensão populacional, envolvendo os níveis individual e coletivo, neste destacando as amplitudes territoriais (município, estado, país).

2. Em segundo lugar, na dimensão social, micro (família, grupo de pares etc.) e macrossocial (estratos, classe social etc.).

3. Em terceiro lugar, na dimensão simbolica-cultural, reconhecendo recortes etnico-raciais (subculturas, grupos étnicos etc.).

No plano próprio da construção metodológica, que ordem de determinantes seriam importantes para compreender gênese e efeitos das iniquidades em saúde? Com prioridade, precisamos estabelecer fontes e origens das desigualdades de modo distinto, mas complementar, à aproximação necessária aos temas de natureza e componentes das desigualdades sociais em saúde do ponto de vista metodológico.

1. Primeiro, fontes/origens das iniquidades em saúde pela vertente da Diferença: geração & gênero; herança familiar & etnicidade; ocupação & educação.

2. Em segundo lugar, fontes/origens das iniquidades em saúde pela vertente da Distinção: religião & comunidade;  estilo & gosto; comportamento & habitus.

3. Em terceiro e finalmente, fontes/origens das iniquidades em saúde pelo ângulo da Desigualdade: renda & poder; status & classe social.

Ainda como desdobramento desse plano de articulação, será imprescindível investigar os efeitos dos processos sociais de produção da saude-doenca-cuidado. Pensamos que, nesse caso, importa explorar o impacto das desigualdades na qualidade de vida, no estilo de vida e nas condições de saúde dos sujeitos.

 Finalmente, já que o assunto daquela reflexão era o conceito de “determinação social da saúde”, considerei pertinente questionar a própria categoria epistemológica de ‘determinação’ e seu correlato ‘determinante’. Aplicando de modo livre tal abordagem pluralista ao nosso tema, podemos propor que o campo da saúde resulta da sobredeterminação de processos e vetores de desigualdades que podem ser referenciados pelas seguintes categorias de processos:

(i)       determinação social da situação e das condições de saúde,

(ii)  produção cultural das práticas e das  instituições de saúde,

(iii) construção simbólica dos sentidos da saúde.  

O diferencial semântico sugerido entre os termos ‘determinação social’, ‘produção cultural’ e ‘construção simbólica’ pode corresponder, numa perspectiva epistemológica mais consistente, a diferentes planos de realidade e distintos efeitos da estrutura de desigualdades que, no cotidiano das sociedades contemporâneas, tornam-se permanente fonte de injustiças e iniquidades. Do ponto de vista da sobredeterminação da saúde-doença-cuidado, mais importante que formalizar rigorosamente métodos para medir desigualdades em saúde certamente será compreender suas raízes e determinantes para sermos mais eficientes no sentido de superá-las.

Conclusão: precisamos nos engajar num trabalho sério de construção conceitual e metodológica capaz de subsidiar a necessária mobilização política no sentido de tornar as diferenças mais iguais (ou menos desiguais); ou seja, promover igualdade na diferença, fazendo com que se reduza o papel das diferenças de gênero, geração, étnico-raciais, culturais e de classe social como determinantes de desigualdades, inequidades e iniquidades econômicas, sociais e de saúde.



[1] Comunicação apresentada como subsídio para discussão no Seminário Determinação Social da Saúde, promovido pelo CEBES, Salvador, Bahia, 19 de março de 2010.

[2] MD. PhD em Epidemiologia. Pesquisador I-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Professor Titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Membro do Comitê Gestor do Observatório da Equidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. E-mail: naomarf@ufba.br.

Um comentário:

  1. No que se refere “A problemática teórica da determinação social da saúde” (Nota breve sobre Desigualdades em Saúde como objeto de conhecimento). Este reflete sobre a problemática teórica, usando embasamento de questões metodológicas, e cumpre o que se propõe de uma forma clara e compreensiva. No entanto há uma passagem do texto que fica um pouco confusa para o entendimento, que é quando fala sobre “desigualdade objetiva e normativa”, a partir da contribuição de Amartya Sem. Eu senti que faltou ao final dessa descrição uma síntese sobre o que se fala, como acontece em relação a outras definições, podendo citar a de Macinko & Starfield, Daniels,Kennedy & Kawachi e Margareth Whitehead. Ainda mais pela definição de Amartya Sem ser uma das mais complexas a meu ver.

    Aline Feitosa Sampaio - Psicóloga.

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